
Solidão Cosmica? A Lógica Aristotélica na Busca por Vida Extraterrestre Pedro Webster Alvares
Logos Editora LTDAO Humanismo Renascentista, movimento intelectual que floresceu na Europa a partir do século XIV, colocou o ser humano no centro do universo (antropocentrismo), em contraste com o teocentrismo medieval, onde Deus era o centro de tudo.
O célebre Discurso sobre a Dignidade do Homem, do filósofo Giovanni Pico della Mirandola, argumenta que a grandeza da humanidade não reside em uma essência imutável. Deus, segundo ele, teria dito a Adão:
“Não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio... Tu, sem estorvo de barreira alguma, o definirás para ti mesmo, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei.”
— PICO DELLA MIRANDOLA, 2017, p. 11
Essa condição de metamorfose e liberdade, de ser indeterminado e capaz de autotransformação, era a marca da singularidade humana — ideal representado iconicamente no Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci.
Essa visão da perfeição humana é herdeira direta da filosofia teológica cristã. A doutrina da Imago Dei (imagem de Deus), presente no livro do Gênesis, sustenta que o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus, dotado de racionalidade, amor e livre-arbítrio (AGOSTINHO, 2025).
Para pensadores cristãos, a humanidade ocupa uma posição central e privilegiada na ordem da Criação.
Da Subjetividade à Solidão Existencial
Séculos mais tarde, essa noção de singularidade seria radicalizada pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard.
Afastando-se da perfeição universal do Renascimento, Kierkegaard mergulhou na subjetividade, argumentando que a existência precede a essência.
Para ele, cada indivíduo é lançado em um abismo de liberdade, condenado a criar seu próprio significado através de escolhas angustiantes (KIERKEGAARD, 2013).
Essa jornada interior — única e intransferível — torna a experiência da consciência humana um fenômeno tão profundo e particular que a ideia de sua replicação em outro lugar do cosmos parece quase inconcebível.
Essa tradição introspectiva, que por séculos definiu o lugar do homem no universo através da fé e da razão filosófica, hoje se vê confrontada por uma nova fronteira de questionamento.
A pergunta “Estamos sós?” deixou de ser um exercício puramente metafísico para se tornar uma hipótese científica.
E para interpretar os sinais encontrados, recorremos a uma ferramenta de pensamento com mais de dois milênios, explicada por nosso tutor Aristóteles: a lógica.
A Filosofia da Ciência e o Silogismo de Marte
As recentes descobertas em Marte, sugerindo a presença de derivados da matéria orgânica, representam um ponto de virada em nossa história.
Contudo, para transformar hipóteses, experimentos e abstrações em conhecimento sólido, é preciso um método rigoroso — um arcabouço intelectual que conhecemos como filosofia da ciência. Sua evolução é, em essência, a história de como aprendemos a pensar cientificamente.
Tudo começa com Aristóteles (384–322 a.C.). Ele foi um dos primeiros a arquitetar nosso raciocínio, formalizando a lógica dedutiva e criando o silogismo.
Em Analíticos Anteriores, Aristóteles define o processo pelo qual o conhecimento seguro pode ser derivado:
“O silogismo é um discurso em que, uma vez certas coisas tenham sido supostas, algo diferente das coisas supostas resulta necessariamente por elas serem o que são.”
— ARISTÓTELES, 2010, p. 94, 24b18–22
Do Método Empírico à Revolução Científica
Séculos depois, Francis Bacon (1620) propôs o método empírico-indutivo, baseado na observação e na experimentação.
No século XX, Karl Popper (1959) reformulou o conceito de progresso científico ao introduzir o critério da falseabilidade — a ideia de que a ciência avança refutando hipóteses.
Já Thomas Kuhn (1962) acrescentou uma dimensão social à epistemologia, mostrando que a ciência opera dentro de paradigmas: estruturas conceituais que orientam o que os cientistas veem, estudam e interpretam.
“A transição de um paradigma em crise para um novo [...] é mais uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios.”
— KUHN, 2011, p. 113
O trabalho de Kuhn nos força a repensar o que é uma “evidência”. Para ele, os paradigmas são mapas conceituais: determinam não só como pesquisamos, mas também o que somos capazes de perceber.
Uma anomalia — algo que não se encaixa no paradigma vigente — é o germe da revolução científica.
E é justamente isso que está em jogo na análise das descobertas em Marte.
A Anomalia Vermelha: O Caso da Greigita
A possível descoberta de derivados de matéria orgânica em Marte não é apenas mais um dado. Ela funciona como uma anomalia crítica ao paradigma de que a Terra é o único lugar com vida — o antropocentrismo.
O geólogo e comunicador científico Sérgio Sacani, no canal Talk Flow (2025), descreve como o rover Curiosity detectou o mineral greigita, um sulfeto de ferro com possíveis origens biológicas.
“É o que a gente chama de excremento de bactéria. A bactéria come a pirita, que é um sulfeto de ferro, e o que ela expele? A greigita.”
— TALK FLOW, 2025
Com base nisso, Sacani construiu o seguinte silogismo aristotélico:
-
Premissa Maior: Se a greigita é um forte e predominante indicador de processos biológicos.
-
Premissa Menor: E a greigita foi encontrada em Marte.
-
Conclusão: Logo, é altamente provável que processos biológicos tenham ocorrido em Marte.
Entre a Lógica e o Ceticismo
Sacani, no entanto, aplica a prudência científica que Popper defenderia. Ele ressalta que a conclusão não é definitiva, pois a premissa maior não é uma exclusividade biológica:
“Pode ter um processo geológico? Pode. Muito difícil? Muito difícil.”
— TALK FLOW, 2025
A solução para refutar ou fortalecer essa hipótese seria uma missão de retorno de amostras. Apenas analisando essas rochas em laboratórios na Terra, com equipamentos mais avançados, seria possível confirmar ou descartar a origem biológica da greigita.
A lógica nos leva até o limite do possível com os dados atuais. O passo seguinte exige novas evidências empíricas.
Assim, a busca por vida fora da Terra revela a ciência em ação — unindo a estrutura atemporal do raciocínio aristotélico ao ceticismo metodológico da modernidade.
Referências
-
AGOSTINHO. Confissões. Editora Logos, 2025.
-
ARISTÓTELES. Órganon: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos, Refutações Sofísticas. Tradução de Edson Bini. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2010.
-
BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (1620).
-
KIERKEGAARD, Søren. O Desespero Humano: Doença para a Morte. 3. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
-
KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
-
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a Dignidade do Homem. Lisboa: Edições 70, 2017.
-
POPPER, Karl R. The Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson, 1959.
-
TALK FLOW. Vida em Marte: Finalmente Temos Evidências? YouTube, 13 set. 2025.
Assista aqui