Senhores do Crime: O Crime Organizado como Metástase da Globalização, por Pedro V. W. Alvares
Logos Editora LTDAA Sociologia de Jean Ziegler
Suíço, nascido em 1934, Jean Ziegler fez de sua vida uma incômoda briga com as engrenagens que esmagam a dignidade humana. Sociólogo, político, relator da ONU, sua obra não é uma crítica acadêmica, mas um grito contra as estruturas de poder que normalizam a fome, a miséria e a violência como meros efeitos colaterais do progresso. Ziegler não é só um observador; ele é um acusador.
No final dos anos 90, enquanto o Ocidente celebrava a queda do Muro de Berlim e a vitória cultural do livre mercado, Ziegler publicou um livro que soava como um alarme de incêndio em meio à festa: Os Senhores do Crime. A obra poderia amargurar até o neoliberal mais otimista. Nela, Ziegler nos pedia para desviar o olhar dos velhos mafiosos de cinema e encarar os novos monstros: corporações criminosas globais que nasciam, cresciam e operavam com a eficiência de uma multinacional.
O Crime como Produto do Sistema
A bomba que Ziegler solta no colo dos leitores é simples e devastadora: o crime organizado moderno não é o “outro lado” do capitalismo. Não é um parasita que ataca um corpo são — ele é a conclusão de um sistema já doente.
Para Ziegler, os três pilares do neoliberalismo — desregulamentação financeira, enfraquecimento do Estado e globalização sem freios — não são apenas sobre economia, mas representam o ato de abrir as portas do galinheiro para as raposas. O colapso do bloco soviético inundou o mercado com armas e criminosos desempregados, enquanto os paraísos fiscais tornaram-se templos onde o dinheiro sujo é lavado e recebe bênção do sistema financeiro.
Ziegler nos obriga a perguntar: o que significa “legalidade” quando o capital do narcotráfico pode, com alguns cliques, virar ações de uma empresa de tecnologia ou o financiamento de um resort de luxo? A fronteira entre o lícito e o ilícito se desfaz, tornando-se uma ilusão conveniente. O crime deixa de ser um caso de polícia e se revela uma questão de poder político e econômico.
PCC – Da Facção Prisional à Holding do Crime
Para entender o PCC, é preciso voltar ao seu berço: o inferno. O inferno do sistema carcerário paulista dos anos 90, cujo ápice foi o Massacre do Carandiru. O “Partido do Crime” não nasceu de um plano de negócios, mas de um pacto de sobrevivência. Seu lema original — “Paz, Justiça e Liberdade” — era uma resposta à opressão do próprio Estado dentro dos presídios.
Com o tempo, o PCC percebeu que o poder real estava no controle dos fluxos de capital. Deixou de ser um sindicato do crime para se tornar uma holding transnacional. A facção aprendeu e aplicou, com eficiência assustadora, as lições do capitalismo globalizado.
Primeiro monopolizou o crime em São Paulo, impondo “disciplina” e reduzindo a violência para otimizar lucros. Depois expandiu-se pelo Brasil e exterior, tornando-se um player central nas rotas de cocaína que conectam América do Sul, Europa e África.
Seu sucesso não vem apenas da violência, mas da competência logística. O PCC opera como uma empresa de importação e exportação, gerenciando portos, contêineres e aviões com precisão empresarial. Em seguida vem a lavagem de dinheiro, ponto central da conexão com Ziegler.
O dinheiro ilícito é “investido” no mercado formal, em postos, lojas, imóveis, fundos e fintechs. É o momento em que o Senhor do Crime senta-se à mesa com o banqueiro, e a distinção entre os dois começa a desaparecer.
“Muitos dos homens que dirigem os grandes bancos e as multinacionais do planeta partilham, no fundo, a mesma mentalidade dos chefes mafiosos...”
(ZIEGLER, 2003, p.18)
Assim, cai o mito do “Estado paralelo”: o PCC não opera à margem, mas através do Estado. Usa estradas, corrompe agentes e explora as brechas do sistema financeiro.
O Debate – A Culpa é do Sistema ou da Natureza Humana?
A ascensão do PCC obriga uma pergunta: ele é uma falha do sistema ou sua expressão mais pura?
De um lado, a visão da esquerda crítica, representada por Jones Manoel, aponta que o crime nasce do capitalismo dependente brasileiro, que gera uma massa de jovens sem oportunidades.
“A burguesia brasileira odeia o Brasil... Ela não tem um projeto de nação.”
(Jones Manoel, Flow News, ago. 2025)
O crime organizado, para essa visão, é um empreendimento dentro da lógica da negação de futuro. O PCC oferece o que o Estado e o mercado negam: carreira, poder e pertencimento.
Do outro lado, a visão liberal-conservadora, representada por Rodrigo Constantino, vê o problema como decadência moral, impunidade e colapso de valores.
“A esquerda festiva trata o bandido como vítima da sociedade. O ser humano tem livre-arbítrio.”
(CONSTANTINO, 2017)
Para essa corrente, o criminoso é responsável por suas escolhas, e a solução está em mais repressão, leis severas e fortalecimento do Estado penal.
Os Senhores do Crime no Brasil
A história do PCC e o impasse ideológico brasileiro mostram que a tese de Ziegler continua atual.
Nem a repressão pura da direita, nem a análise estrutural da esquerda oferecem soluções completas. O PCC não é o oposto da ordem — é uma nova forma de ordem. Uma corporação criminal com plano de carreira, disciplina e poder econômico.
Enquanto o capital legal e ilegal continuarem a se misturar nos bastidores do sistema financeiro, a advertência de Ziegler se mantém:
“Onde os senhores do crime prosperam, a democracia morre. Onde eles governam, a lei do mais forte substitui o Estado de direito.”
(ZIEGLER, 2003, p.315)
Referências
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FELTRAN, Gabriel de Santis. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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MANSO, Bruno Paes. A Guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.
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CONSTANTINO, Rodrigo. O crime não compensa? No Brasil, compensa. E muito! Gazeta do Povo, 25 jul. 2017.
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STUDART, Hugo. PCC: A Facção. Revista Oeste, 18 fev. 2022.
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FLOW NEWS. Jones Manoel fala de Milei, Bolsonaro na Economist e Faria Lima dominada pelo PCC. YouTube, 29 ago. 2025.
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ZIEGLER, Jean. Os Senhores do Crime: As novas máfias contra a democracia. Rio de Janeiro: Record, 2003.