O Menino que aos 10 anos decorou o Alcorão: Avicena, o filósofo cultuado pelo Irã que influenciou o Ocidente Por Pedro Webster Alvares Leitura

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Poucos nomes na história do pensamento humano ressoam com a mesma magnitude — e dificuldade para nós, latinos — que o de Abu Ali al‑Hussein Ibn Abd Allah Ibn Sina, conhecido no Ocidente como Avicena (980–1037). Médico, filósofo, teólogo, matemático e astrônomo, sua figura transcende séculos e civilizações, representando um dos mais brilhantes elos entre a sabedoria da Grécia Antiga e o florescimento intelectual da Europa. Nascido na antiga Pérsia, Avicena não foi apenas um erudito, mas um gênio cuja precocidade e profundidade de conhecimento continuam a fascinar.


Uma mente precoce: o Háfiz e o futuro mestre

A genialidade de Avicena manifestou-se de forma extraordinária desde a infância. Como o título anuncia, aos dez anos ele já havia decorado integralmente o Alcorão, recebendo o título de Háfiz — honra reservada a quem guarda na memória um texto com mais de 6.000 versículos e cerca de 77.000 palavras. Não foi um mero exercício mnemônico: foi um mergulho teológico e linguístico que alimentou o desejo de conciliar fé e razão, tema central de sua obra.

Sua sede de conhecimento era insaciável. Antes dos 18 anos, Avicena já praticava medicina, além de dominar lógica, matemática, jurisprudência e filosofia. A fama de “o Grande Mestre” (Al‑Shaykh al‑Ra’īs) logo se espalhou pelo mundo islâmico.


Obras que atravessaram séculos

A produção de Avicena ultrapassa duzentos títulos. Duas obras, em particular, garantiram sua imortalidade intelectual:

  • Al‑Shifá’ (A Cura) — enciclopédia filosófica monumental;

  • Kitāb al‑Qānūn fī al‑Ṭibb (O Cânon de Medicina) — síntese que revolucionou a prática médica por séculos, organizando saberes greco‑romanos e árabes.

Contribuições médicas notáveis:

  • Conceitualização de quarentena e defesa do isolamento (por 40 dias) em doenças contagiosas como a tuberculose;

  • Princípios de farmacologia clínica: critérios rigorosos para testar eficácia de medicamentos em humanos, com reprodutibilidade — um claro prenúncio dos ensaios clínicos;

  • Registro do uso de compostos orais e inalatórios (como derivados da papoula/ópio) para induzir sono profundo antes de procedimentos — precedente da anestesiologia.


Al‑Shifá’ (A Cura)

Frequentemente traduzida como O Livro da Cura, esta enciclopédia de 18 volumes é, na verdade, uma “cura para a ignorância da alma” — seu magnum opus filosófico. Abrange lógica, física, matemática e, de forma proeminente, a metafísica. Avicena dialoga com Aristóteles, Platão e o neoplatonismo, mas constrói um sistema próprio, original e robusto, que influenciaria de modo decisivo tanto o mundo islâmico quanto a escolástica cristã. Tomás de Aquino o cita mais de 250 vezes na Suma Teológica.

“Nossa intenção é pôr neste livro o fruto das ciências dos antigos que pudemos verificar; ciências baseadas numa dedução firme ou numa indução aceita pelos pensadores que buscam a verdade há muito tempo. Esforcei‑me por incluir na obra a maior parte da filosofia. Não há nada de importante nos livros dos antigos que não figure nesta obra.”
Avicena (Al‑Shifá’). Referido em MADKUR, 1980, p. 15.


Essência e existência: o pilar metafísico

Avicena se situa entre idealismo e realismo, encaminhando‑se a um realismo moderado. Sua célebre distinção entre essência (māhīya) e existência (wujūd) é central:

  • A essência (por exemplo, “humanidade”) pode ser considerada:

    1. como universal no intelecto;

    2. como singular na realidade;

    3. em si mesma, neutra, nem universal nem singular.

“Logo, as essências das coisas ou são nas próprias coisas [físicas], ou são no intelecto. Possuem, portanto, três aspectos. Um aspecto da essência é a sua consideração em si mesma, não relacionada aos dois tipos de existência [...] Em si mesma, a essência não é nem universal nem singular.”
Avicena, 1977, Tratado V, cap. 1; cf. PARANÁ, p. 87.

Assim, o mundo material é real e ontologicamente independente do pensamento. Nas coisas criadas, existência não é propriedade inerente à essência; é um acidente concedido por causa externa: o Ser Necessário (Deus), em quem essência e existência se identificam.


O coração da filosofia de Avicena

Para Avicena, a filosofia é aperfeiçoamento da alma. Da distinção essência‑existência deriva sua prova da existência de Deus: divisão entre ser possível (contingente) e Ser Necessário (auto‑suficiente e causa primeira).

“O ser necessário por si mesmo é o que é para si, não para outra coisa, seja o que for; torna‑se absurdo não supô‑lo. E o ser necessário não por si é aquilo que, quando se supõe alguma coisa que não seja ele, torna‑se ser necessário; como o número quatro é necessário não por si mas quando se supõe dois mais dois.”
Avicena, A Origem e o Retorno.

Essa estrutura teológica e ontológica moldou séculos de filosofia e teologia.


Árabe ou persa?

Se Avicena nascesse hoje, a qual nação pertenceria? Nascido em Afshana (atual Uzbequistão), era etnicamente persa, e sua vida/obra se ligam ao coração cultural da Pérsia. Faleceu em 1037; seu túmulo está em Hamadã, no Irã.

No Irã, é reverenciado como Hakim — não apenas “médico” ou “filósofo”, mas sábio que integra ciência, filosofia e espiritualidade. Seu nome em persa, Bu Ali Sina — بوعلی سینا, batiza a Universidade Bu‑Ali Sina (Hamadã) e inúmeras instituições. O aniversário de Avicena, celebrado em 1º de Shahrivar (geralmente 23 de agosto no calendário gregoriano), marca o Dia Nacional do Médico no Irã. O Mausoléu de Avicena, complexo monumental com museu e biblioteca, é um marco arquitetônico e ponto de peregrinação acadêmica.

Para os iranianos, Avicena é a personificação da Idade de Ouro Persa — um lembrete do papel histórico do Irã na ciência e na filosofia e inspiração para novas gerações.


Legado e reflexão para o presente

Avicena viveu em uma era de intenso intercâmbio cultural. Hoje, a região enfrenta tensões geopolíticas, sanções e isolamento. Que barreiras um gênio como Avicena enfrentaria agora? A guerra e a hostilidade sufocam a circulação do conhecimento e podem privar o mundo de novos grandes mestres.

Sua filosofia é preciosa pela profundidade e pelo caráter universal: a busca pela verdade não conhece fronteiras de fé ou cultura. Ao lembrarmos do menino que aos 10 anos decorou o Alcorão e se tornou um dos maiores pensadores da história, vemos que o verdadeiro legado da humanidade não está nos conflitos que nos dividem, mas no conhecimento que nos une.


Referências

  • AVICENA. A Origem e o Retorno: Tratados I, II e III. Tradução comentada do árabe e aparelho crítico por Jamil Ibrahim Iskandar. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

  • ATTIE FILHO, M. Falsafa: a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002.

  • CRUZ HERNÁNDEZ, M. La vida de Avicena. Salamanca: Anthema Ediciones, 1997.

  • MADKUR, I. B. “Al‑Shifa: O universo em um livro.” O Correio da Unesco, Rio de Janeiro, a. 8, n. 12, 1980.

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