O Leviatã Tropical e a Soberania em Disputa, por Pedro V. W. Alvares

O Leviatã Tropical e a Soberania em Disputa, por Pedro V. W. Alvares

Logos Editora LTDA

O que é Soberania? Um Conceito em Tensão

Uma das palavras mais ouvidas nos noticiários dos últimos meses aqui no Brasil e que revela um conceito de suma importância à filosofia política: a soberania.

Em sua essência, conforme definido pela Stanford Encyclopedia of Philosophy, soberania denota a autoridade suprema dentro de um território. É a qualidade que distingue o Estado de todas as outras formas de poder, conferindo-lhe o direito de comandar e a prerrogativa de ser obedecido.

A própria etimologia da palavra nos guia a essa noção de supremacia. Derivada do latim superanus — significando "chefe" ou "comandante", aquele que está "acima" dos outros — a palavra carrega a ideia de um poder que não reconhece outro igual nem superior na tomada de decisões.

A combinação de super e omnia (poder sobre tudo) reforça essa imagem de autoridade final e inquestionável.

Foi o jurista francês Jean Bodin, no século XVI, quem primeiro sistematizou essa ideia, definindo a soberania como "o poder absoluto e perpétuo de um Estado-Nação" (BODIN, 1576).

Para Bodin, escrevendo em meio às guerras religiosas na França, um poder soberano forte e unificado era a única salvação ante a anarquia política da época.

Essa formulação clássica, que estabelece um ponto de partida teórico, parece oferecer uma sustentação sólida e coerente. No entanto, essa solidez é enganosa: a história da filosofia política e a realidade contemporânea revelam que a soberania é, na verdade, um conceito em constante disputa, um campo de batalha onde visões opostas se chocam.


O Soberano Absoluto de Hobbes: A Ordem Nascida do Medo

O mais influente e rigoroso conceito de soberania viria no século seguinte, também representando um novo capítulo na história da filosofia.

Thomas Hobbes escreveu sua obra-prima, Leviatã (1651), em meio à Guerra Civil Inglesa, um período de profunda instabilidade que moldou sua visão pessimista da natureza humana.

Sua teoria parte não de ideais divinos ou morais, mas de uma premissa materialista e psicológica: o medo.

Hobbes descreve o "estado de natureza", onde, sem um poder central, os homens vivem em constante guerra — a famosa bellum omnium contra omnes, a guerra de todos contra todos.

Nessa condição, a vida do homem é, em suas palavras imortais, "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta".

A saída racional para esse caos é o pacto social, onde cada indivíduo renuncia ao direito de governar a si mesmo e transfere esse poder a uma autoridade comum — o Leviatã, o Estado soberano.

“Uma pessoa, de cujos atos uma grande multidão, mediante convenções recíprocas entre si, foi instituída por todos como autora, de modo que possa fazer uso da força e dos recursos de todos, conforme julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns.”
Hobbes, Leviatã, Logos Editora, p. 345-347

Para Hobbes, o soberano é absoluto e indivisível — não pode haver poder acima nem paralelo a ele. Submetê-lo à lei seria uma contradição, pois ele é a própria fonte da lei.

Como lembra Norberto Bobbio, em Hobbes “soberania e caráter absoluto são unum et idem” — uma e a mesma coisa (BOBBIO, 1997).

Essa concepção rompe com o pensamento medieval, retirando de Deus a origem da autoridade. A soberania, em Hobbes, é uma tecnologia política nascida do medo, projetada para impor a ordem a qualquer custo.


Soberania Nacional no Brasil: Um Campo de Batalha Político

A soberania não é estática — ela se transforma conforme as mudanças históricas e políticas. No Brasil, esse conceito sempre foi terreno fértil de disputa.

Em 1822, a tensão entre Dom Pedro I e a Assembleia Constituinte já colocava em confronto duas concepções:

  • Soberania popular, que emana dos representantes eleitos;

  • Soberania monárquica, que emana “pela graça de Deus”.

Essa tensão moldou as bases do Estado brasileiro — e ainda hoje ecoa na polarização contemporânea.

A Perspectiva da Esquerda

Para movimentos e partidos de esquerda, soberania é sinônimo de autodeterminação e resistência ao imperialismo.
Defende-se a autonomia nacional frente a potências estrangeiras — especialmente os EUA — em temas como Amazônia, tecnologia e política externa.

Os lemas de manifestações como “Quem manda no Brasil é o povo brasileiro” refletem essa visão.

A Perspectiva da Direita

Já setores da direita transformam a soberania em patriotismo autoritário, exaltando símbolos nacionais enquanto mantêm alinhamento ideológico com potências externas.

Esse “patriotismo paradoxal” faz com que o discurso de defesa da nação se converta, ironicamente, em vassalagem geopolítica.


O Encontro de Leviatãs: A Soberania Brasileira sob Pressão dos EUA

O episódio do “tarifaço” de 2025 ilustra como pressões externas se entrelaçam com disputas internas.

Em julho, os EUA impuseram uma tarifa de 50% sobre exportações brasileiras, justificando a medida como retaliação ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo STF.

Foi um ato de chantagem política internacional, um ataque direto à soberania do Brasil.

O paradoxo: setores da direita brasileira, críticos do “ativismo judicial”, celebraram a sanção estrangeira — ou seja, aceitaram interferência externa enquanto clamavam por soberania interna.

O governo respondeu com o Plano Brasil Soberano, defendendo o país da pressão econômica e reafirmando sua autonomia diplomática.

Esse episódio demonstra que a soberania do século XXI é testada não apenas por ameaças externas, mas por alianças internas que enfraquecem a autonomia nacional.


De Onde Emana o Poder? Soberania Popular vs. Soberania Institucional

A crise da soberania também se reflete na relação entre povo e instituições.

No Brasil, o STF tornou-se ator central em decisões políticas e internacionais, inclusive comentando a crise da Venezuela — o que levanta o debate: estaria o Judiciário extrapolando sua soberania institucional?

No extremo oposto, o caso do Nepal em 2025 mostrou o colapso da soberania institucional. Protestos contra o governo degeneraram em insurreição popular:

  • O Parlamento e a Suprema Corte foram incendiados;

  • O primeiro-ministro renunciou;

  • Surgiram apelos pela restauração da monarquia.

O incêndio da Suprema Corte simbolizou o limite da paciência popular: seria anarquia ou a radical afirmação da soberania do povo?


Repensando a Soberania no Século XXI

A trajetória do conceito — de Hobbes a Lula, do Leviatã europeu ao tropical — mostra que a soberania não é um poder imóvel, mas um campo em disputa constante.

Ela é:

  • Social, como em Marx, refletindo lutas de classe;

  • Institucional, nas tensões entre povo e Estado;

  • Global, nas batalhas entre autonomia nacional e alianças ideológicas.

Hoje, o desafio é reinventar a soberania: um poder que garanta a ordem sem suprimir a liberdade, que proteja o povo sem capturá-lo.

O Leviatã, tropical ou não, ainda ruge — mas talvez precise aprender a ouvir.


Referências

  • BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition. University of Chicago Press, 1997.

  • BODIN, Jean. Os seis livros da República. 1576.

  • EUA e sua velha receita: Soberania brasileira em risco? Relações Exteriores, 16 jul. 2025.
    Link

  • HOBBES, Thomas. Leviatã, Logos Editora, 2025.

  • KING’S gambit: Will Nepal's Gyanendra Shah make a move now? The Economic Times, 9 set. 2025.

  • MANIFESTANTES incendeiam Parlamento do Nepal; premiê deixa o cargo. Terra, 9 set. 2025.

  • PHILP, Mark. Sovereignty. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2020.

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