Logos e Areté: A Lógica da Virtude e a Crise da Razão na Política Contemporânea  Pedro V. W. Alvares

Logos e Areté: A Lógica da Virtude e a Crise da Razão na Política Contemporânea Pedro V. W. Alvares

Logos Editora LTDA

A Lógica como Fundamento da Vida Política

Os escritos lógicos de Aristóteles, posteriormente compilados sob o título Organon, não foram concebidos como “instrumentos” abstratos, mas como parte de um projeto filosófico completo, que vincula o pensar à prática.

Aristóteles parte do princípio de que pensamento, linguagem e realidade estão intrinsecamente conectados; a estrutura de um raciocínio correto reflete a estrutura da própria realidade.

Ao definir o ser humano como um animal político (zoon politikon), ele estabelece que nossa realização plena ocorre na pólis, a cidade-Estado. Assim, a arte de governar e de ser um bom cidadão não é apenas uma habilidade técnica, mas o reflexo prático de uma vida guiada pela razão e pela virtude.

“A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem de sabedoria prática.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco

O objetivo final da ação humana é a eudaimonia, a felicidade entendida como uma atividade da alma em conformidade com a virtude (areté).

A virtude, contudo, não é um dom inato, mas o resultado do hábito e da disciplina moral — o equilíbrio entre dois extremos viciosos: o excesso e a falta.

A coragem, por exemplo, é o meio-termo entre a covardia (falta) e a temeridade (excesso). A generosidade, entre a avareza e o desperdício.

Encontrar esse equilíbrio exige phronesis, a sabedoria prática — ponto em que ética e lógica se encontram.


A Lógica como Ferramenta da Virtude e da Escolha Política

Se a virtude é o objetivo, a phronesis é a habilidade para alcançá-lo — e a ferramenta que a aprimora é o logos, a razão.

Em sua Retórica, Aristóteles define logos como a persuasão obtida pela argumentação racional, demonstrando uma verdade ou uma aparência de verdade (Retórica, Livro I, 1356a).

A lógica é o método que estrutura o pensamento e valida conclusões: ela ensina a examinar premissas e a reconhecer falácias.

Sem essa capacidade, a busca pela virtude torna-se uma obra do acaso.

No campo político, o logos é ainda mais crucial. Cidadãos e governantes precisam da lógica como bússola moral e racional:

  • O cidadão virtuoso usa o raciocínio para distinguir entre argumentos legítimos e falácias emocionais.

  • O governante virtuoso usa a lógica para deliberar com prudência e agir com coragem.

Um líder sem razão ou virtude é refém dos extremos: pode ceder ao populismo imprudente (excesso) ou à paralisia covarde (falta).

O governante equilibrado, em contraste, usa o logos para servir ao bem comum — não ao próprio poder.


O Bom Governante e a Finalidade da Política

Para Aristóteles, a finalidade da política não é o poder, mas a eudaimonia coletiva.

O bom governante cria as condições para que os cidadãos vivam de modo virtuoso e feliz. Sua autoridade deriva da sabedoria prática, não da força.

“Pois aquele que nunca aprendeu a obedecer não pode ser um bom comandante.”
Aristóteles, Política, Livro III

A liderança, nesse sentido, é um serviço, não um privilégio. O governante deve ser o mais virtuoso dos cidadãos, guiando o Estado pela inteligência e pela ética — não pela tirania ou pelo interesse pessoal.


A Erosão do Logos: A Falácia como Estratégia de Poder

O discurso político contemporâneo sofre uma crise do logos.

As falácias — raciocínios manipulativos que distorcem a verdade — tornaram-se ferramentas estratégicas de poder. Elas substituem a deliberação racional pela coerção emocional e minam o pacto civilizatório que sustenta o debate público.

Quando cidadãos e líderes não conseguem identificar falácias, a democracia se enfraquece: a confiança no poder da razão cede lugar à manipulação psicológica.


Falácias Comuns no Discurso Político

1. Argumentum ad Hominem

Ataca o caráter ou circunstância pessoal do oponente em vez de refutar o argumento.

Exemplo: “Não podemos levar a sério a proposta econômica do candidato A, pois ele é investigado por corrupção.”

O foco desloca-se da ideia para o indivíduo, invalidando o debate racional.

2. Falácia do Espantalho

Distorce o argumento do adversário para refutá-lo com facilidade.

Exemplo:
Político A: “Devemos investir em programas sociais.”
Político B: “Meu oponente quer transformar o país em um Estado comunista.”

Cria uma caricatura do argumento, desviando o diálogo do mérito real.

3. Falso Dilema ou Falsa Dicotomia

Reduz uma questão complexa a duas opções extremas, ignorando alternativas.

Exemplo: “Ou você apoia a guerra, ou está do lado dos terroristas.”

Elimina o espaço do meio-termo — exatamente onde, para Aristóteles, reside a virtude.


A Retórica da Ira: Populismo e Demonização do Outro

A política moderna vive sob o império do pathos descontrolado.

O populismo divide o corpo político em dois blocos: “o povo puro” contra “a elite corrupta”. Essa retórica mobiliza emoções intensas — raiva, medo, ressentimento — para destruir o logos.

Adversários deixam de ser cidadãos com opiniões diferentes e tornam-se inimigos existenciais.

Essa dinâmica é anti-aristotélica, pois aniquila a philia politike, a amizade cívica que une a pólis.

Em Retórica, Aristóteles descreve três formas de persuasão:

  • Logos: a força racional do argumento;

  • Pathos: o apelo emocional;

  • Ethos: o caráter e credibilidade do orador.

No discurso populista, essa hierarquia se inverte: o pathos domina, o ethos é teatral e o logos é degradado em propaganda.

“O populismo não é apenas não-aristotélico — é uma corrupção sistemática do logos.”
FERREIRA, 2025


A Falta de Ethos: Desinformação e a Crise do Julgamento

A era digital multiplicou a crise da razão.

A velocidade da informação e da desinformação mina a capacidade de reflexão e destrói o ethos político.

Fake news e manipulação de dados corroem a confiança pública, substituindo o debate real por factoides polarizadores.

Aristóteles poderia descrever esse fenômeno como uma falha no silogismo prático do cidadão:

  • Premissa Maior: “Devo votar em um candidato honesto e competente.”

  • Premissa Menor: “O candidato X é honesto e competente.”

  • Conclusão: “Voto no candidato X.”

Quando a premissa menor é distorcida pela desinformação, a decisão política se torna irracional, mesmo que a intenção seja virtuosa.

O combate à desinformação, portanto, não é um capricho moral, mas uma defesa da racionalidade democrática.


A Decisão Virtuosa

Retornar a Aristóteles é um gesto de resistência intelectual.

Num tempo de polarização, impulsividade e manipulação emocional, a síntese aristotélica de razão e virtude oferece uma saída.

A política depende da capacidade dos cidadãos de pensar e deliberar logicamente, e da virtude moral dos líderes que escolhemos.

A lógica torna a ética praticável; a ética torna a política possível.

Recuperar a saúde democrática exige alfabetização lógica e midiática, espaços de deliberação racional e líderes guiados por phronesis — não por ira.

“A política, em sua forma mais nobre, é a razão prática voltada para a satisfação humana em sociedade.”


Referências

  • ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2001.

  • ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1997.

  • ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.

  • Aristotle’s Logic and the Organon. Fiveable, [s.d.].

  • FERREIRA, Lourenço. Retórica Emocional e Populismo Digital. Revista Rhêtorikê, Coimbra, v. 1, n. 11, 2025.

  • BRASIL. As ameaças da desinformação eleitoral na era da “dromocracia”. Brasil Contra Fake, 2024.

  • GODOY, William. Ad hominem circunstancial: “você não faz o que defende!”. Filosofia na Escola, [s.d.].

  • ABBÀ, Giuseppe. A atualidade da phrónesis na ética de Aristóteles. Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade, n. 16, 2014.

  • RAWLS, John. A Theory of Justice. Harvard University Press, 1971.

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