Estudos em Hegel 3: O Grito dos Cegos - A Eticidade em Crise na Performance Urbana, por Pedro V. W. Alvares

Estudos em Hegel 3: O Grito dos Cegos - A Eticidade em Crise na Performance Urbana, por Pedro V. W. Alvares

Logos Editora LTDA

Nos artigos anteriores, exploramos como a luta por reconhecimento se manifesta no sistema democrático e nas paredes da cidade. Agora, chegamos ao seu palco mais íntimo e, ao mesmo tempo, mais público: o corpo humano.

A performance Cegos, do grupo de teatro de rua Desvio Coletivo, remove a arte de espaços tradicionais e a transforma em uma procissão de rua, com corpos anônimos cobertos de argila que se movem lentamente contra o fluxo da metrópole.

Cegos foi criada em 2012 pelo grupo de São Paulo, que atua na fronteira entre teatro, performance e artes visuais. Priscilla Toscano é uma das fundadoras e diretoras artísticas do coletivo, junto com Marcos Bulhões e Marcelo Denny.


A performance que atravessa fronteiras

Desde sua criação, Cegos tornou-se uma das intervenções urbanas brasileiras de maior repercussão, já tendo sido apresentada em mais de 23 estados brasileiros e em diversos países — como Estados Unidos, França, Chile e Coreia do Sul — sempre se adaptando ao contexto político e social de cada local.

Vamos conferir como essa intervenção artística encena uma crítica ao consumo, utilizando o espaço urbano para expor uma crise em nosso sistema que afeta a todos. Com suporte dos estudos de Axel Honneth e do antropólogo Marc Augé, vamos decifrar o que o silêncio e o grito desses corpos nos dizem sobre nossa própria cegueira.


A Performance no "Não-Lugar"

Para entender a força de Cegos, precisamos primeiro entender onde ela acontece. A performance não escolhe um teatro, mas as ruas, calçadas, praças e shoppings.

O antropólogo francês Marc Augé diagnosticou com precisão esses espaços presentes na era da supermodernidade: lugares de passagem, consumo e trânsito que carecem das marcas que definem um lugar histórico. São espaços anônimos, funcionais, onde a identidade e as relações são suspensas.

“A supermodernidade é produtora de não-lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a 'lugares de memória', ocupam aí um lugar circunscrito e específico...”
Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade, p. 73

Os atores de Cegos, com sua lentidão fantasmagórica e seu silêncio perturbador, são a negação viva dessa lógica. Eles recusam a pressa, a funcionalidade e o anonimato forçado, criando uma ruptura no fluxo contínuo da cidade.

A performance recria um "lugar" no coração do não-lugar, um espaço de questionamento e de encontro.


O Ritual do Capital e o Desrespeito

Um dos momentos mais perturbadores e simbolicamente densos da performance é quando os “cegos” param diante de shoppings e agências bancárias e se prostram, como se venerassem templos sagrados.

Esse ato expõe a lógica do capitalismo tardio: o valor do indivíduo é medido por sua capacidade de consumir e produzir. O shopping e o banco não são apenas edifícios; são os altares da fé no capital.

“...esta versão nasceu do desejo de refletir sobre a mercantilização do espaço urbano, que transforma cidades em centros comerciais unicamente disponíveis para quem pode pagar...”
Desvio Coletivo (citação livre)

Aqui, a teoria da luta por reconhecimento de Axel Honneth se torna evidente. A performance encena o que Honneth chama de desrespeito na esfera da estima social — uma forma de rebaixamento que atinge a honra de uma pessoa.

“Com a experiência de ver rebaixado o valor social de seu modo de autorrealização, o sujeito é privado de toda a possibilidade de poder atribuir um valor social a suas próprias capacidades...”
Axel Honneth, Luta por reconhecimento, p. 216

Os performers, ao se cobrirem de argila e vendar os olhos, apagam suas identidades individuais para se tornarem estátuas anônimas.

Eles encarnam a figura daquele que, privado de sua autoestima, executa cegamente os rituais do capital em busca de um valor que o próprio sistema lhe nega estruturalmente.

A prostração não é apenas simbólica; é a linguagem corporal da submissão a uma ordem que o desumaniza.


O Grito como Demanda por Reconhecimento

Se a caminhada silenciosa e a veneração representam a submissão, o clímax da performance — o grito coletivo após arrancarem as vendas — é a revolta.

Aquele grito é a própria luta por reconhecimento em sua forma mais explícita. É o momento em que a consciência da própria condição de “cegueira” explode em um ato de negação.

O grito é a recusa em continuar participando do ritual anônimo do não-lugar, do “não-sentir”, do “não-ser”.

Ele simboliza a exigência de relações sociais autênticas e de uma estima social não condicionada pelo mercado.

A performance Cegos nos deixa uma reflexão final e desconfortável:
Quantas vezes ao dia caminhamos, nós mesmos, como cegos por esses não-lugares, venerando os mesmos altares, em busca de um reconhecimento que parece sempre escapar?


Referências

  • Augé, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Papirus, 1994.

  • Honneth, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Editora 34, 2003.

  • Desvio Coletivo. “CEGOS - Performance na Virada Cultural 2015”. YouTube, 8 de outubro de 2015.

  • Site Oficial do Desvio Coletivo: desviocoletivo.com.br

  • Martins, Christiane de Fátima. “O espectador da performance urbana artivista: uma análise da recepção da intervenção Cegos, do Desvio Coletivo.” Tese de Doutorado, USP, 2022.

  • Vídeo: YouTube - Performance CEGOS

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