
A terra que mana leite e mel: O exílio de Georges Bernanos no Brasil
João Pedro Tavares de LimaL'aube de la nouvelle année s'est levée pour moi sous des trombes de pluie. Du haut de notre petite colline de la Croix des-Âmes, nous voyons, depuis des semaines, fondre peu à peu nos mauvais chemins, comme du beurre sur une assiette brûlante. La gracieuse ville blanche, à une demi-lieue, paraît toute proche, mais aucune voiture n'oserait se risquer jusqu'à nous et les chevaux eux-mêmes parcourent avec méfiance cette route effondrée qui glisse peu à peu sur sa propre pente. Jamais je ne me suis senti plus étroitement prisonnier de la sottise et de la méchanceté des éléments, mais ma pensée ne s'en tourne que plus librement vers ce que j'aime
Georges Bernanos, janeiro de 1943
INTRODUÇÃO
O Brasil de 1938 vive o Estado Novo. Implantado autoritariamente, dispensando grandes mobilizações, o golpe getulista fora visto de certa forma como inevitável, e o Congresso dissolvido submetera-se sem outra resistência que aquela dos integralistas que, diante da oposição manifesta, foram rapidamente silenciados. No que diz respeito à política externa, diversos vinham sendo os alinhamentos e realinhamentos do Brasil em relação às grandes potências mundiais, de forma que o Estado Novo compunha-se como mais um elemento na escala de interações no palco internacional. Já há algum tempo adotando uma orientação pragmática, tal conduta não se alterou significantemente na sequência do golpe de 1937. Após um breve período de afinidade ideológica com a Alemanha de Hitler, o regime de Vargas estabiliza-se, marcando distância com o nazifascismo nacional. A eclosão da Segunda Guerra faz com que haja uma nova definição dos rumos da política externa brasileira, aproximando o país da Aliança e dos Estados Unidos. Com a entrada dos ianques na guerra, em dezembro de 1941, Getúlio Vargas passa a insistir tanto no conceito de pan-americanismo quanto no papel − econômico e militar − do Brasil no esforço de guerra.
É neste contexto político que as terras brasileiras acolhem Georges Bernanos, um dos grandes nomes da literatura francesa da primeira metade do século XX. Na esteira de homens de pluma como Paul Claudel e Blaise Cendrars, que tiveram também sua experiência brasileira, Bernanos, notório monarquista e cristão fervoroso, estabelece-se inicialmente no Rio de Janeiro, depois no interior de Minas Gerais, na companhia da esposa e dos seis filhos. Tendo rompido com a Action Française, é no exílio, vivido de 1938 a 1945, em grande parte na pequena propriedade de Cruz das Almas, em Barbacena, que Bernanos produz alguns de seus textos mais complexos e onde exerce plenamente o papel de intelectual engajado na defesa da liberdade.
Desta feita, o presente artigo examina, na medida do possível, a influência do exílio brasileiro na vida e obra de Bernanos, tanto do ponto de vista ficcional quanto dos artigos com os quais contribuiu para jornais e revistas brasileiros e franceses. Para tanto, após uma breve reflexão sobre o conceito de exílio, percorrem-se alguns momentos da trajetória de Bernanos no Brasil, que repercutem em trechos das correspondências a seus amigos, bem como em alguns textos teóricos e críticos. Desta feita, procura-se perceber de que forma o escritor francês manifesta sua postura intelectual em relação à França e ao Brasil, país este que, de acordo com o filho Jean-Loup, “Bernanos a profondément aimé” .
Mais que simples levantamentos de dados ou estabelecimento de paralelos entre estes dois países tão caros ao autor, este trabalho propõe-se a investigar mais um fator de impacto nas relações transculturais entre l'Hexagone e a Terra brasilis, que, nunca tendo sido coloniais, estão no entanto reciprocamente imbricadas. Sob a óptica de Mario Carelli, brasilianista que se dedicou profundamente ao assunto dos tranferts culturels entre França e Brasil, Bernanos acabará por sofrer uma brasilianização5, e cabe a nós verificar até que ponto este abre-se ao nosso país e quais são os possíveis reflexos desta abertura na obra bernanosiana.
O CONCEITO DE EXÍLIO E O EXÍLIO PARA BERNANOS
Edward Said abre de forma provocativa seu célebre ensaio Reflections on Exile, ao afirmar que o exílio é algo extremamente atrativo para se refletir sobre, porém terrível enquanto experiência. Assim, evoca o conflito gerado entre o ser humano deslocado e a terra natal, entre o eu e o chão de onde este procede, o estranhamento permanente cujo desalento jamais será suplantado. A despeito de todas as conquistas que possam advir de uma possível inserção positiva no local de exílio, dominará sempre a perda daquilo (ousamos acrescentar, à nossa guisa, daqueles) deixado(s) para trás:
“Exile is strangely compelling to think about but terrible to experience. It is the unhealable rift forced between a human being and a native place, between the self and its true home: its essential sadness can never be surmounted. And while it is true that literature and history contain heroic, romantic, glorious, even triumphant episodes in an exile's life, these are no more than efforts meant to overcome the crippling sorrow of estrangement. The achievements of exile are permanently undermined by the loss of something left behind forever.”
O termo exílio (em francês, exil) remonta ao latim, ex(s)ilium, de exsilire “sauter hors de”, e em seu sentido primeiro pode ser definida7, na língua francesa, por “expulsion de quelqu'un hors de sa patrie, avec défense d'y rentrer; situation de la personne ainsi expulsée [...]” permitindo também a variação exílio voluntário, aquele “qu'on s'impose selon les circonstances, le danger”; ou seja, a expatriação. Por extensão literária, compreende também a “obligation de séjourner hors d'un lieu, loin d'une personne qu'on regrette”, sendo assim afastamento, separação. Pode-se dizer que essas acepções, Georges Bernanos viveu-as todas.
Mas ele mesmo, quando se refere a exílio, o faz com certa reticência. Sobre seu período no Brasil, ao qual nos referimos no título do presente artigo como degredo, afirma: “ce mot d'exil est trop grand pour moi” (Les enfants humiliés8, EF, p. 788). No entanto, independentemente das restrições, considera-se ele mesmo, na distante Pirapora, como um “exilé” (Correspondance II, p. 248 9; Les enfants humiliés, EF, p. 824). E, embora refute as atribuições de “émigré”, “homme des lettres au Brésil ”, “conférencier en tournée”, “vagabond des lettres”, “hôte de passage” e tantas outras, evitando igualmente o emprego da palavra banissement, constata sem subterfúgios: “l'exil est l'exil” (Correspondance II, p. 490).
Do grego éksodos temos o vocábuo êxodo (bem como exode em francês), passagem, saída, emigração de um povo 10, aquele que dá nome ao segundo livro do Pentateuco. Nos seus versículos, lemos que o anjo do Senhor apareceu a Moisés em uma sarça que ardia sem nunca se extinguir. O Senhor Deus, tendo ouvido o clamor do seu povo, prometia a este fazê-lo subir do Egito para “uma terra fértil e espaçosa, uma terra que mana leite e mel” (Ex 3, 2;7-8)11.
Muitas foram, e ainda são, as especulações feitas acerca das razões que conduziram o escritor francês ao Brasil. Das hipóteses mais plausíveis, adoçadas pelo sabor exótico dos trópicos, àquelas que pertencem ao lugar comum e às lendas heroicas que se perpetuam, muito se diz e pouco se sabe, legitimamente, sobre a motivação de Bernanos ao embarcar no navio Florida, em Marseille, a fim de cruzar definitivamente o Atlântico em direção à América Latina, atracando no Rio de Janeiro em quatro de agosto de 1938.
De qualquer forma, é fato que Bernanos buscava uma passagem para um mundo novo, para o inesperado, quiçá a terra prometida. Tal qual um novo Moisés, talvez tivesse ouvido um chamado para a libertação dos cativos em sentido amplo, tarefa ingrata e impossível sob o signo do nazi-fascismo que se instalara na Europa. Brilharia o sol na terra prometida? Dela manaria leite e mel? O sabor doce que nutre, é subsistência. Independência para pensar, autonomia para escrever: soberania da palavra, finalmente liberta nos campos de uma nação, costeada pelo Atlântico e insubmissa ao jugo alemão. Fé. Suposições.
Sobre aqueles que tudo justificam graças à sua natureza errante, o autor mesmo declara:
“Je ne suis pas venu au Brésil par amour des voyages ou de l'aventure. Déjà, il y a cinq ans, j'avais quitté la France pour l'Espagne, où je serais encore aujourd'hui si l'atmosphère de la révolution terroriste, de droite ou de gauche, ne m'était devenue intolérable. Aujourd'hui comme alors, je m'éloigne de mon pays pour les mêmes raisons”.
Yves Baudelle analisa que, dentre as causas deste “exil volontaire”, embora seja inegável a busca de alguma segurança material, esconder-se-iam razões políticas e morais.
Cabe lembrar que seu destino inicial era o Paraguai, sonho de juventude que termina antes mesmo de tomar corpo. O território paraguaio, recém emergido da guerra do Chaco (1932-1935), pouco se assemelha ao país de Cocanha onde previra estabelecer-se com sua tribo de seis herdeiros. Mais parece uma terra infértil onde as raízes do homem trabalhador e justo não têm como se fixar. Pouco menos de uma semana após desembarcar em Assunción, Bernanos, já a caminho de Buenos Aires, vê o Brasil desenhar-se como opção. Sobre isso, ele escreve a um amigo:
“[...] je m'en vais, jeudi sans doute, avec ma tribu, vers Rio de Janeiro. Je crois que votre idée était bonne, et c'est vraiment le Brésil qu'il me faut. Les hautes légumes de ce pays béni de Dieu m'y réclament. En avant! [...]. Je suis absolument éreinté, mais joyeux. Les amis que j'ai partout sont magnifiques et d'une unité de vues tellement émouvante! Comment aurais-je pu croire que ce grain jeté aveuglément, au hasard, ait levé. Je ne savais même pas quel grain!”
E nesse país grandioso, vasto, francófilo, Bernanos é acolhido com carinho e entusiasmo. Nele tecerá relações com diversos intelectuais que se mostram interessados pelo sombrio destino da Europa15. Logo nos primeiros dias, recebe o que chamará de “le beau poème de M. de Lima [Jorge de Lima]”, acolhendo-o calorosamente na singular língua dos poetas. Ao retribuir-lhe a gentileza, afirma consternado o autor francês: “Le monde ne sais plus souffrir, le monde a perdu le don des larmes. Que la Poésie le lui rende, qu'elle lui réaprrenne à pleurer. Qu'elle aide à porter humblement sa honte, pour que le courage le lui revienne de la surmonter, puis de l'expier!”16. Expressa, assim, seu desejo de que a Palavra, enquanto égide, seja também o objeto de reabilitação do sensível. Se for possível exprimir o lamento, arrefecer-se-á a dor da opressão.
Nessa terra de esperança que parece ser o Brasil, as venturas, no entanto, não se sobrepõem facilmente aos dissabores, e o sofrimento é a palavra que mais jorra do manancial do romancista. Segundo Baudelle, “le Brésil ne fut pas seulement pour Bernanos le théâtre de son exil, il en fut la réalité même, la plus rugueuse réalité”.
Essa realidade áspera e indigesta compreende uma intensa errância. Por vezes tenta, desanima. Encoraja-se novamente e reergue-se com a força de suas palavras. Em Pirapora, “au bout du monde” (Les enfants humiliés, EH, p. 867), o escritor impregna-se pouco a pouco da imensidão brasileira, mas sem perder a identidade. Dessa trama, nasce a obra, e um pouco dela consideramos aqui.
A OBRA DE BERNANOS NO BRASIL
Assim que desembarca novamente no Rio de Janeiro, desta vez em busca de um pedaço de chão onde fincar raízes, Bernanos recebe um duro golpe: primeiro de setembro de 1938, a vergonha do acordo de Munique. Apesar das tentativas de dissuasão dos novos amigos, que gostariam de vê-lo estabelecer-se no Rio, Bernanos está decidido a desbravar o interior, a explorar juntamente com seus filhos e sobrinho um campo fértil que lhe permita subsistência e a redação livre do que lhe aprouver. Tenta inicialmente fixar residência em Itaipava, perto do Rio, onde fica pouco tempo.
Na sequência, nova experiência em Juiz de Fora, nas Minas Gerais, pouquíssimos meses, onde escreve Scandale de la vérité. Pouco após, em fevereiro de 1939, é a vez de Vassouras. Lá, numa choupana próxima à fazendola onde moram, Bernanos escreve avidamente, num caderninho escolar “à deux sous”, as primeiras linhas de Nous autres les Français, que será publicado em Paris algumas semanas após a declaração da guerra. Em junho do mesmo ano, mudam-se para Pirapora, pequena comunidade às margens do São Francisco, mais de mil quilômetros distante do Rio de Janeiro. É o sertão brasileiro. Lá, a família toda aguarda provisoriamente, numa casa antiga sem móveis nem conforto, até que se encontre “l'hypothétique domaine correspondant aux vœux et surtout aux ressources amaigries de Bernanos”.
Declarada a guerra, o escritor começa a redação de um Journal de Guerre que será publicado somente em 1949 sob o título de Les enfants humiliés. Enquanto avança nesse livro, ele encontra, graças à prestimosa ajuda do grande amigo Virgilio de Mello Franco, uma vasta propriedade cerca de vinte quilômetros de Pirapora, sem água nem eletricidade, para onde a família muda-se dia 8 de novembro de 1939. A fazenda Santo Antônio parece ser o local que Bernanos tanto esperava:
“J'ai trouvé en ce pays, sinon la maison de mes rêves, du moins celle qui ressemble le mieux à ma vie, une maison faite pour ma vie. Les portes n'y ont pas de serrures, les fenêtres pas de vitres, les chambres pas de plafond, et l'absence de plafond fait qu'on y
découvre tout ce qui dans les autres est caché, le vénérable envers des poutres, poutrelles et chevrons, le pâle or gris taché de rose des douces tuiles usées, les grands pans d'ombre que le jour rogne à peine et qui semble noircir encore la lumière de nos lampes [...].”
Infelizmente, o gado, o clima, as dificuldades inerentes à inexperiência conduzem-no ao fracasso. Sem dispensar o bom-humor, Bernanos avalia sua situação financeiramente desesperadora:
“[...] je n'avais jamais pensé m'enrichir à Pirapora, ou ailleurs, j'espérais seulement gagner ici de quoi vivre, sans plus, et je vois bien qu'il me faudra écrire beaucoup de livres pour entretenir la fazenda et les vaches, dont j'attendais, au contraire, qu'elles nous entretiendraient. Mais à part ce renversement des rôles, le vieux cher pays impossible me plaît, et aussi la vie que j'y mène.”
Segundo o filho Jean-Loup, a despeito da desilusão financeira, é em Pirapora que se dá tanto o conhecimento do Brasil quanto a inserção deste na obra de seu pai, pois, até então, Bernanos não teria vivido o país. E, nele, haveria estranhamento, hostilidade calada desta terra nova em relação ao escritor, que veria refletir-se no Brasil — e mesmo nele incarnar-se — o desastre da sua pátria.
A invasão em 10 de maio de 1940, a partida dos filhos Yves e Michel para Londres, engajados no esforço de guerra, fazem com que Bernanos tenha o premente desejo de aproximar-se novamente da cidade grande, bem como dos amigos que o apoiam. Contando novamente com a ajuda de Virgilio de Mello Franco, e após o descarte possível do gado ainda restante, encontra outra morada em Barbacena, ainda nas Minas Gerais, mas muito mais próximo do Rio de Janeiro. No flanco de uma colina que abriga uma cruz de madeira designada como Cruz das almas, em memória às tantas vítimas de martírio cristão, encontra-se o simbólico e definitivo abrigo de Bernanos no Brasil. Um vasto conjunto de textos escritos em solo brasileiro receberá a denominação de Chemin de la Croix-des-Âmes, por desejo do próprio autor. Nesta hora, Bernanos parece não apenas abraçar a cruz que lhe cabe, como ser reconhecedor do longo caminho ainda a percorrer sustentando o peso do lenho.
Contudo, lembra-nos Eric Benoit, Bernanos compreende que há exílio bem como errância, porque o homem não pode alcançar diretamente os luminosos jardins do Paraíso outrora perdido: “Sacré Paradis! Il y a certainement une route directe, toute droite. Mais nous sommes trop de travers pour la prendre” (19 juillet 1941, Corresp. II,
p. 416).
VESTÍGIOS DE FRANÇA, COMUNHÃO COM O BRASIL
Se no começo do exílio, Bernanos procura correspondências, semelhanças entre o sertão e seu país natal (Lettre aux Anglais, LaA, p. 10), aos poucos percebe que todas essas aproximações são forçadas. Segundo Yves Baudelle, uma verdadeira antítese entre Natureza e História impõe-se, e, no Brasil, a natureza consumiria a civilização. O exílio, livremente escolhido, implica o sofrimento do dépaysement, sem dúvida, mas no caso de Bernanos aprofunda a reflexão sobre o destino da França. Assim, para Baudelle, a identidade da nação francesa é ponto comum e essencial das obras escritas no Brasil: saber o que é, ou quem é, a França, eis a questão que se faz o autor, mesmo estando “de l'autre côté de la terre” (Nous autres Français, NAF, p. 617), e talvez este afastamento, esta expatriação, a dor da distância e o contato com a terra nova sejam a única forma de permitir-se questionar e tentar alcançar a resposta, pois, à distância, “tout s'éclaire, et s'éclaire en se purifiant” (Scandale de la Vérité, SV, p. 610-611).
E como justificar a desilusão de uma nação invadida e conspurcada, aos brasileiros que “[...] aiment passionément la France, d'une tendresse ombrageuse et jalouse qui me déconcerte”? Questiona-se ainda o autor: “Que leur dire de mon angoisse? Ils aiment la France d'amour, et nous l'aimons comme ses fils. Mieux vaut crever seul dans son coin que soutenir des regards que je ne puis laisser aller jusqu'au fond du mien” . Diante da pátria abusada, Bernanos evoca um sofrimento à imagem daquele supremo do Cristo no Getsêmani: “Depuis deux mille ans les générations de chrétiens n'ont rien d'autre à faire que de revivre les unes après les autres la Passion du Seigneur, mais la nôtre entre dans le plus intime et le plus profond secret de cette agonie: la solitude totale, le total abandon” (19 juillet 1942, Correspondance II, p. 466).
Mas a terra estranha, que incialmente não provoca grandes expectativas (“Du pays qui m'entoure, je n'attends pas grand-chose, cela va sans dire [...]”), que nada mais é do que a única opção após a busca frustrada do Paraíso, cativa-o. Ao grande amigo Virgílio de Mello Franco, ele escreve em novembro de 1941: “Il y a désormais comme un pacte entre votre pays et mon âme, l'amitié que je lui porte est une chose scellée”. O Brasil consola-o, e apesar da angústia que emana da guerra, converte-se em “foyer”, “maison” e mesmo “patrie”. No comovente prefácio à Lettre aux Anglais, Bernanos expõe claramente ao mundo o que antes estava reservado apenas aos amigos mais próximos, ou, como bem aponta Mario Carelli, o reconhecimento de uma evolução de seus sentimentos pelo Brasil:
“On dira peut-être un jour que ce livre a été écrit en exil; mais, depuis bien des mois, je ne me sens plus ici un exilé. Si modestement et si simplement que je l'exprime, il eût mieux valu sans doute que ce sentiment demeurât secret [...]. Je ne me vante pas de connaître [le Brésil]. Je ne le connais pas _ du moins au sens que les esprits réalistes donnent à ce mot, c'est-à-dire que j'ai oublié peu à peu les quelques notions qui m'auraient donné jadis
l'illusion de le connaître. Je le connais beaucoup moins qu'il y a trois ans, mais il me semble que je commence à le comprendre, et c'est pourquoi je m'excuse de parler de lui à des étrangers, au risque de rendre publique ma dette de gratitude, comme si je prétendais ainsi l'acquitter. Après Munich, j'écrivais que j'étais venu au Brésil “cuver ma honte”. Je n'y ai pas cuvé ma honte, j'y ai retrouvé ma fierté, et c'est ce peuple qui me l'a rendue.”
Ainda de acordo com Carelli, Bernanos encontra no povo brasileiro traços que correspondem à sua visão de França eterna, embora ele tenha conseguido, ao longo do
tempo, ir além das suas relações com o real para finalmente perceber a alteridade
brasileira. Na busca de uma essência, de raízes, de uma comunhão com a França
campagnarde, Bernanos despoja-se de tudo, penetrando verdadeiramente no Brasil e
alcançando o “trésor caché du peuple brésilien”. Ao estabelecer um paralelo entre as
virtudes dos dois povos, o autor exalta a humildade do brasileiro, nela reconhecendo sua
riqueza, tanto em significado humano quanto em ensinamento espiritual:
“Lorsque j'ai parcouru pour la première fois ces paysages de collines, de Rio à la capitale verdoyante de Minas [...], j'y cherchais à découvrir quelque chose qui ressemblât aux villages de mon pays; et je n'y trouvais le plus souvent que des maisons solitaires, avec les champs d'épis de maïs inégaux envahis par les herbes, leurs bananiers déchirés par le vent, et les panaches de bambous aussi orgueilleux et presque aussi vains que les grandes métaphores claudéliennes. Alors me venaient aux lèvres, hélas! les “On devrait”, “Il faudrait”, “On aurait pu”, “On aurait dû” de l'ignorance prétentieuse. Mais j'ai fini par vous comprendre, oh! paysans si différents des nôtres et cependant si pareils, parce que j'étais né pour vous aimer [...]. L'étranger vous compare à vos frères d'Europe, et trouve que vous ne la travaillez guère. Vous ne la travaillez peut-être pas autant qu'eux, mais vous mourez bien davantage. Nos paysans donnent leurs sueurs, et vous lui donnez vos vies [...]. Ainsi le rythme de votre effort n'est pas le même que celui du nôtre, ou plutôt votre effort a gardé un rythme que le nôtre a perdu. Ainsi vous pouvez souffrir et durer là où tout autre que vous épuiserait en peu de temps son courage”
Bernanos não só rompe com estereótipos (ainda que tenha acreditado neles no princípio), como aponta um vínculo de “connaturalité” entre o Brasil Profundo e a Velha França, esboçando paralelismos entre o Brasil império e a França monárquica, bem como exalta a mistura de raças que caracteriza o povo brasileiro. Mas seu olhar não é ingênuo, não se restringe à mestiçagem ou às nuances do país. Lucidamente, embora perpassado pela angústia, denuncia o que considera cegueira e falsas promessas no país que o acolheu, e convoca o Brasil moderno para o combate pela liberdade. Em conferência de despedida do país, dirigida a estudantes congregados pela UNE (União Nacional dos Estudantes) em dezembro de 194431, um Bernanos inflamado de amor e princípios exorta a nova geração a resgatar o que resta de uma liberdade legítima:
“Jeunes gens et jeunes filles du Brésil, ce que je vais vous écrire aujourd'hui, c'est tout ce que je laisserai de moi, et, quand vous vous souviendrez du vieil écrivain de la Croix-des-âmes, dans vingt ans, trente ans, si votre mémoire m'est, par l'impossible, fidèle jusque-là, ce sont ces paroles, depuis longtemps oubliées, qui remonteront peut-être à votre insu des profondeurs de votre conscience. Jeunes gens et jeunes filles, écoutez-moi bien, voici
mon dernier message. La liberté ne veut pas seulement être aimée, la liberté se moque actuellement d'être aimée, elle veut être sauvée, elle exige son salut. Jeunes gens et jeunes filles, c'est d'abord en vous, c'est dans vos esprits, que vous sauverez la liberté. “Mais nous sommes des esprits libres!” répondrez-vous. En êtes-vous sûrs? Vous vous vantez d'être libres. C'est déjà la preuve que vous ne l'êtes peut-être pas encore tout à fait. Car la liberté de notre pensée se conquiert chaque jour contre nous même, contre nos habitudes, nos préjugés, l'effort de la propagande, et cette lutte ne va pas sans d'amères déceptions, des défaites humiliantes, qui vous enlèveraient — si vous en faisiez la cruelle expérience — toute certitude d'être encore vraiment libres, ou du moins de vous proclamer tels.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma palavra permeou a trajetória pessoal e profissional de Georges Bernanos. Sobre ela, o autor traça, em Les enfants humiliés, reflexões dolorosas assombradas pela guerra e redigidas no calor do sertão brasileiro.
Digamos que se trate da palavra verdade:
“J'écris ces lignes dans la maison de l'ancien vacher, maintenant vide. [...] De cette paix étrange qui n'est pas faite pour les hommes, de ces profondeurs végétales, la pauvre pensée que je dédie si naïvement à ceux que j'aime ne réussit certainement pas à franchir le premier cercle de l'ombre. Oh! non, je n'ai pas la prétention qu'elle franchisse les mers! Je ne me sens pas du tout la conscience du monde. Mais c'est assez de me dire que la petite part de vérité dont je dispose, je l'ai mise, ici, à l'abri des menteurs. [...].
“Je comprends de plus en plus que je n'ajouterai rien à la vérité dont j'ai le dépôt, je ne pourrais m'en donner l'illusion. C'est moi même qui devrais me mettre à sa mesure, car elle étouffe en moi, je suis sa prison, et nos pas son autel. Le sourire que je lui dois, c'est celui de ma propre personne. Je ne le libérerai qu'à ma mort, et si je mourais pour elle, je me libérerais avec elle, je m'échapperai avec elle dans la lumière sans rêves. En attendant, et jusqu'à la fin de ma tâche, nous serons face à face, elle et moi, le vrai drame se jouera entre nous, mon œuvre- si c'en est une - n'y ajoutera rien. Qu'importe d'ailleurs que mon œuvre survive? La grâce que j'attends ce qu'elle revive, fût-ce en un autre siècle, un autre temps, une autre terre, une autre âme, et qui ne saura rien de moi, pas même mon nom. Il y a mille fois plus d'honneur à revivre qu'à survivre” (Les enfants humiliés, EH, p. 902)
Não há medidas para avaliar quantitativamente a influência da simplicidade da casa do vaqueiro, do cheiro do campo, da solidão sertaneja na obra de Bernanos. Porém é inegável que, aos pés da cruz de madeira no alto da colina em Barbacena, o escritor depositou um pouco de sua alma, antes de seguir intrépido o caminho nas tropas do Cristo rumo à verdade absoluta.
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