A Atividade Física e as Críticas às Filosofias Dualistas , por Pedro Webster Alvares

A Atividade Física e as Críticas às Filosofias Dualistas , por Pedro Webster Alvares

Logos Editora LTDA

O Ideal Grego e a Unidade do Ser

Na Grécia Antiga, o conceito de ser humano era indivisível da harmonia entre corpo, mente e espírito. A atividade física não era um hobbie da vida cotidiana, mas um pilar fundamental da educação (paideia) e da virtude humana (areté). Ginásios eram centros de desenvolvimento intelectual e físico, onde filósofos como Platão e Aristóteles não apenas lecionavam, mas também se exercitavam.

Essa cosmovisão integrada encontrou sua máxima expressão nos Jogos Olímpicos, iniciados em 776 a.C. em Olímpia. Mais do que uma competição atlética, os Jogos eram um festival religioso e cultural que celebrava a beleza, a força e a agilidade do corpo como manifestações de uma perfeição interior.

A vitória de um atleta era uma honra para sua cidade-estado, um testemunho de que a disciplina física era um caminho para a virtude e o reconhecimento divino. Para os gregos, educar um cidadão significava forjar tanto o seu intelecto quanto o seu físico; um corpo saudável e treinado era o templo de uma mente sã e virtuosa.

Contudo, ao longo da história do pensamento ocidental, essa unidade primordial foi sistematicamente fragmentada. A ascensão de correntes filosóficas que separavam radicalmente a mente do corpo legou à modernidade um dilema profundo, cujas implicações se estendem até os dias de hoje, moldando a maneira como concebemos a saúde, o treinamento e o propósito da atividade física.

Vamos explorar as raízes desse conflito, analisar suas consequências para a prática da atividade física e propor um resgate da visão completa do ser humano, argumentando que o movimento é uma expressão integral da existência — e não apenas uma função mecânica de um corpo subordinado.


As Raízes Filosóficas do Conflito: Do Dualismo Platônico ao Cartesiano

O problema da relação mente-corpo remonta aos primórdios da filosofia grega. De um lado, a tradição idealista, representada emblematicamente por Platão, propunha uma dicotomia fundamental. Para ele, o mundo era composto por um reino eterno e imutável das ideias, acessível apenas pela razão, e um mundo transitório e imperfeito das aparências, percebido pelos sentidos corporais.

Nessa perspectiva, o corpo era frequentemente visto como uma “prisão” para a alma imortal — um obstáculo a ser superado para alcançar o verdadeiro conhecimento.

Em contraposição, pensadores como Aristóteles, embora discípulo de Platão, rejeitaram esse dualismo ontológico, adotando uma postura mais empírica. Aristóteles via o corpo não como um empecilho, mas como o instrumento essencial para o conhecimento da realidade através da experiência e da percepção.

Para ele, pensar e perceber eram capacidades do corpo, e a alma (psiché) era a forma, o princípio organizador que dava vida à matéria corporal.

Apesar da profundidade do pensamento aristotélico, foi a vertente dualista que ganhou força no pensamento ocidental, sendo sistematizada séculos depois por René Descartes.

Em suas obras, Descartes estabeleceu a célebre distinção entre a res cogitans (a substância pensante, a mente) e a res extensa (a substância material, o corpo). Ele definiu a mente como inextensa e imaterial, e o corpo como uma máquina complexa, desprovida de pensamento.

Embora Descartes admitisse uma união íntima entre as duas substâncias, sua separação conceitual inaugurou uma era em que o corpo passou a ser visto como objeto — um autômato estudado pelas leis da mecânica — enquanto a mente se tornava o domínio exclusivo da consciência e da razão.

“A alma é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo, e ela pode ser ou existir sem ele.”
Descartes, 1641

Essa visão cartesiana exerceu uma influência tão vasta que seu eco reverbera até hoje, inclusive em defensores de peso como Popper e Eccles. No entanto, essa separação abriu um abismo conceitual que se tornou um dos problemas mais persistentes da filosofia e da ciência — e que também afeta a forma como concebemos os esportes e o corpo em movimento.

A herança do dualismo cartesiano permeou a teoria e a prática da Educação Física, muitas vezes de forma implícita.

A consequência mais direta foi a objetificação do corpo, tratado como uma máquina a ser treinada, medida e otimizada para a performance. Nessa perspectiva, o corpo torna-se servo da mente — um instrumento para atingir objetivos extrínsecos.

O teórico Paul Weiss exemplifica essa visão ao afirmar que “ser plenamente mestre de seu corpo” (Weiss, 1969) implica fazer com que ele atue em consonância com o que a mente dita. Para ele, a mente é um “vetor” que indica a direção para a qual o corpo deve agir, e o treinamento é a arte de ajustar o corpo para que ele siga essa rota.

Essa hierarquia cria uma incompatibilidade epistemológica fundamental com a ideia de uma educação através do físico.

Se o conhecimento verdadeiro, para Descartes, deriva da reflexão da mente sobre si mesma — e não das experiências sensoriais falhas do corpo —, então a atividade física não pode ser uma fonte de conhecimento genuíno.

Essa mentalidade contribui para uma distinção problemática entre os conceitos de “saúde” e “fitness”. Como aponta C. Balkam (1986):

  • Saúde é um estado harmonioso e um fim em si mesmo, a realização inteligente das potencialidades do corpo.

  • Fitness, por outro lado, é o estado corporal necessário para atingir uma meta de performance, como vencer uma competição.

A busca incessante pelo fitness pode levar o atleta a tratar seu corpo como um meio para um fim, introduzindo desarmonia e colocando a própria saúde em risco.


Críticas e Alternativas: Uma Visão Holística

A crítica mais contundente ao dualismo moderno talvez seja a do filósofo Gilbert Ryle, que o apelidou de “o dogma do Fantasma na Máquina”.

Ryle argumentou que Descartes cometeu um erro categorial ao tratar mente e corpo como entidades da mesma categoria lógica (“coisas” ou “substâncias”), quando na verdade pertencem a categorias distintas.

Para Ryle, falar de processos mentais não é descrever operações de um fantasma espectral dentro do corpo, mas descrever as disposições e habilidades de uma pessoa para agir de maneira inteligente no mundo.

Essa análise desloca o foco de uma “mente interior” para a conduta observável, abrindo caminho para uma compreensão não dualista da inteligência e da ação.

Essa desconstrução filosófica encontra eco em abordagens práticas que buscam superar a fragmentação do ser humano.

A fenomenologia, por exemplo, rejeita a separação mente-corpo e propõe o conceito de consciência corporificada (embodied consciousness). Nessa visão, o ser humano é uma unidade singular — um “corpo-vivido” que percebe, age e cria sentido no mundo através de sua corporeidade.

O atleta, portanto, não “possui” um corpo que ele utiliza, mas é o seu corpo em movimento.

Essa perspectiva se alinha à sabedoria de tradições orientais como o yoga, o tai-chi e as artes marciais, que não separam o treinamento físico do desenvolvimento mental ou espiritual.

Essas práticas cultivam uma consciência interna e uma integração que o Ocidente apenas recentemente começou a valorizar.

A educação física, a partir de um paradigma holístico, deveria incorporar essas práticas para fornecer “novas imagens e novos caminhos para descrever nossas experiências”.

A linguagem desempenha um papel crucial na manutenção do paradigma dualista. Termos como “controle mental sobre o corpo” perpetuam a noção de duas entidades separadas em uma relação de comando.

Mesmo teóricos que defendem abordagens “somáticas” ou “holísticas” por vezes caem em armadilhas linguísticas, recorrendo ao jargão dualista para criticar o próprio dualismo.


A Atividade Física como Expressão do Ser Integral

Hoje, testemunhamos um crescente anseio por uma visão mais integrada. A convergência entre a crítica filosófica, os avanços na neurociência, a sabedoria das tradições orientais e a perspectiva fenomenológica aponta para um novo paradigma.

Nesse paradigma, a atividade física transcende o mero treinamento do corpo para se tornar uma forma de educação para a completude do ser.

É um caminho para o autoconhecimento, a autoexpressão e a busca por um estado de harmonia em que mente e corpo não são entidades em conflito ou hierarquia, mas facetas inseparáveis da mesma realidade: a existência humana.

O desafio para educadores, atletas e praticantes é, portanto, superar os vícios de uma linguagem e de um pensamento fragmentados.

É preciso reencontrar a sabedoria antiga de que o movimento não é algo que o corpo faz, mas algo que o ser humano é.

A verdadeira excelência física não reside apenas na vitória ou no recorde, mas na manifestação de um ser humano plenamente consciente, integrado e vivo em seu corpo — o verdadeiro templo de sua existência.


Referências

  • Dutra, L. V. (1996). O Dualismo Mente-Corpo: Implicações Para a Prática da Atividade Física. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual Paulista.

  • Balkam, C. (1986). Teleology and Fitness: an Aristotelian Analysis. In: KLEINMAN, S. (Ed.) Mind and Body. Champaign: Illinois, Human Kinetics Publishers.

  • Weiss, P. (1969). Sport: A Philosophic Inquiry. Carbondale, Illinois: Southern Illinois University Press.

  • Descartes, R. (1641). Meditações sobre a Filosofia Primeira.

  • Platão. A República.

  • Ryle, G. (1949). The Concept of Mind.

  • Aristóteles. De Anima (Sobre a Alma).

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